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???Dizem que sou louco???

"A pior das loucuras é, sem dúvida, pretender ser sensato num mundo de doidos", disse Erasmo de Roterdã.

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 fonte: Google Imagens

Dizem que toda rua tem um doido. Aliás, todo bairro, toda cidade ou planeta deve ter seus doidos. Ainda na infância conheci alguns deles; na adolescência apareceram outros mais e na atual fase adulta, percebi que o mundo inteiro é um manicômio de portas abertas. Eles são tantos que parece que nós, os ditos normais, tornamo-nos minoria e eles a regra banal desse sistema de coisas que é o mundo.

O Maluco-beleza”

Em São Luís do Maranhão, na infância serena e cheia de esperanças, conheci Adalto. Adalto era um rapagão magro, preto-petróleo, voz áspera, olhos vigilantes, sempre com uma vara na mão. Era o caçador oficial das pipas de rua, pipas cortadas por cerol rival na disputa da molecada; era a pipa se perder no azul e o negro correr como papa-léguas rumo à conquista lúdica. Não havia obstáculo, muro agigantado, cachorro raivoso, vizinho ameaçador: Adalto saltava sobre todos eles em direção à sua monomania. Ele só falava de pipa, fazia pipa, capturava, consertava, comprava... Sua vida era uma pipa. Algumas pessoas – os derrotados do cerol – detestavam Adalto e chamavam-lhe de doido velho, preto maluco, zé pilantra. Até chegaram a jogar-lhe pedras e acionar a polícia contra ele. Eu respeitava o gigantismo de Adalto e por isso surgiu entre nós apreço. Quando ele não tomava os remédios, tinha ataques epilépticos no meio da captura das pipas. Todas ficávamos com medo, sem entender direito tudo aquilo. Mudei-me de São Luís, mas comigo levei a lembrança de Adalto, um gigante pássaro negro que só queria voar num céu de pipas azuis.

De todos os doidos do mundo eu quis você!”

Teresina tornou-se a cidade universitária de minha fase adulta, cheia de estudos, enganos e desafios. A capital conta com o Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu. Lá internaram Faustino que depois de fugir do tratamento médico, vivia pelos pontos de ônibus da cidade à procura de sua mãe. “Mamãe vai voltar qualquer horinha, você vai ver!”. Dava dó: ele observava quem descia do busão na esperança de ver sua mãe; falava sozinho por horas até um coletivo se aproximar, aí ficava naquele silêncio inocente, todos desciam do ônibus e nada da mãe chegar. “Mamãe não veio hoje, mas amanhã ela vem”. O povo contava que depois de uma gravidez adolescente, a mãe de Faustino tomara remédios para abortar. Ele nasceu sem problemas, mas a cólera da mãe e os abusos do padrasto fizeram Faustino trancar-se num mundo de amor por uma mãe que não existia para ele. Contam os populares que certo dia desceu de um carrão uma madame a quem Faustino lançou-se em prantos. “É mamãe, mamãe voltou pra mim!”; a mulher gritou assustada, o povo afastou o rapaz da madame que saiu desconfiada do local. Faustino jura ser aquela mulher a sua mãe. Dia seguinte, lá está ele à espera de uma mãe mais doente do coração do que Faustino da cabeça.

Loucura, loucura, loucura!”

 Piripiri (PI) me apresentou a Doida do Mercado quando eu, ainda crente na busca da felicidade, fui trabalhar naquele município. Antes, contavam que a vida dela era correr atrás de políticos da região; por acreditar demais, decepcionou-se profundamente com os partidos que lhe tiraram o pouco que tinha. Caiu na miséria e no desespero, passou fome e frio, viveu a solidão e o escárnio amigo. Conhecedora os podres políticos, começou a abrir o verbo, mas para muitos, a pobreza extrema prejudicou lhe a sanidade. Agora ela passa os dias no mercado central da cidade, trabalhando para os vendedores em troca de comida. Estatura e humor baixos, olho e juízo vesgos, cabelo e paciência curtos. Às vezes, algum feirante confia-lhe uma faca para descascar frutas. Muita calma nessa hora: se passa um político qualquer, a Doida do Mercado explode sua loucura e propinas rompem entre denúncias reais e fictícias com nomes públicos e número de contas privadas. Mas num país como o nosso, escândalos de corrupção não é loucura. É normalidade.

Adalto, Faustino, a Doida do Mercado. Indivíduos abandonados pela vida, gente que sorri, chora e sangra como a gente, homens e mulheres que desafiam nossa lógica porque não amam o dinheiro, o poder e a luxúria, loucuras eternas pelas quais nós, pessoas de bem, matamos ou morremos. Por serem estranhos, loucos como a gente, eles não deixam de ser humanos. Ao seu modo, frente à crueza da vida, eles são felizes. “Dizem que sou louco por pensar assim / Se sou muito louco por eu ser feliz / Mas louco é quem me diz /Que não é feliz, não é feliz”.

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