O que quererá saber o cronista do futuro sobre a cidade de Campo Maior? Daqui a 100 anos o que dirão as pessoas sobre este município brasileiro? O que quererão saber historiadores, ciborgues, sociólogos, alienígenas, bisnetos ou cibernautas sobre esta pequena cidade?
Cada historiador aponta uma origem para este município centenário: uma fazenda perdida no tempo, uma família oligárquica reinante, uma igreja cristã das antigas... O certo é que por várias gerações o sangue do índio extinto e o suor do negro escravizado construíram essa cidade de boas famílias. Neste século 21, as fazendas seculares de Campo Maior ainda existem e desafiam a reforma agrária – não há notícias de sem-terra ocupando as charnecas da região.
Os feudos campo-maiorenses serviram à criação de gado e à manutenção de hierarquias sociais seculares; a carne de sol representa o lado positivo dessa pecuária, é orgulho da culinária piauiense e já foi notícia em rede nacional... Seu preço está cada vez mais salgado para o bolso do nativo.
Campo Maior possui rios – Longá, Surubim e Jenipapo, e um pequeno açude grande. Todos eles sofrem com a agressão ambiental nossa de cada dia: asssoreamento, lixo e destruição. A água que chega às residências é de qualidade duvidosa para os rins de muita gente.
O açude permanece sujo e o povo continua a fazer caminhadas em sua orla para manter a saúde individual e a sociabilidade hospitaleira em dia, como diz o hino-plágio da cidade. A carnaúba (Copernicia prunifera) é árvore que sobrevive a estiagens regulares, mas não se sabe se ela resistirá às alterações climáticas apocalípticas do presente futuro.
"O homem é um animal político": há muitos animais em Campo Maior, políticos livres de cidadãos corruptos – perdão: cidadãos livres de políticos corruptos. Famílias tradicionais disputam a mamata da administração pública. São clãs ora rivais, ora colegas de ocasião que se revezam no poder político há décadas. Mas há por aí uma nova geração de famílias que dizem, as línguas populares, veio para ficar et secula in seculorum.
Comerciantes dividem-se entre pagar aos empregados ou os impostos municipais; empresários fazem dinheiro como podem e devem – capitalismo selvagem. A indústria de moda pede para o funcionário vestir a camisa da empresa, enquanto o patrão veste a roupa de marca. Salário mínimo e carteira de trabalho assinada são coisas raras, mas acontece. Profissionais liberais – advogados, prostitutas, engenheiros, traficantes, jornalistas - disputam no tapa cada cliente no restrito mercado da cidade.
Os festejos de Santo Antônio são o maior evento religioso da região. Um procissão de fiéis seguem e imagem e o pau casamenteiro do santo católico até a catedral da cidade. A praça Bona Primo vira um mundaréu de oportunidade para todos. A politiquice local profana a festa do santo ao distribuir as joias arrematadas do leilão aos correligionários pobres de espírito e de cargo sentados nas mesas das barraquinhas. Cada noite das trezenas é dedicada a um segmento social. Os esquecidos vaqueiros são lembrados pelas autoridades em uma dessas noites, e depois voltam às fazendas de seus coronéis para o ostracismo de sempre.
O povo local somos de um jeito par e ímpar, diferentes e iguais a todo o resto do Brasil e do mundo. Tipos humanos? Aqui tem gente boa, grupinho mão-de-vaca, heróis do Jenipapo, ladrão felaputista, amigo do peito, inimigo estribado, pai-coruja, mãe-ganso, filho-égua, família reunida, parente afobado, menino sabido, adolescente rebelde, idoso 10 anos, mulher inteligente, homem chulado, criança a balde, imortal falecido, atleta sem patrocínio, político bom de peia, gay machista, comandre prendada, vizinho intrometido, partidário-capacho, cadeirante ativista, bebum infarento, feirante maduro, mendigo de corpo e alma, rico pobre de espírito, marombeiro selfista, religioso de verdade, intelectual medíocre, jovem consciente, visitante fuleiro, universitário bairrista, playboy de merda, artista sonhador, patrão carrasco, trabalhador honesto, um cronista metido a besta (ou realista demais) e as classes sociais – os pobres, os nobres e os esnobes.
Temos muitas escolas, bons alunos e dignos professores, o que falta é educação para todos. Salvo exceções, a saúde local é tão boa que os doentes daqui vão se tratar em Teresina (medo de nossa UPA-fantasma!). Nos tribunais da lei e da ruas, se alguém fica dividido entre a justiça e o direito, escolhe a verdade e corre. Não há meninos de rua ou favelas por aqui, mas a periferia existe como realidade de povoados invisíveis ao poder público. O trânsito assusta pedrestres e motoristas vítimas de semáforos pisca-piscas, vias sem sinalização e acidentes evitáveis. A feira é boa e sortida de tudo.
No esporte há condições de investir em jovens atletas que não têm um ginásio que preste para treinar. Há muitos acadêmicos com boas pesquisas para publicar e enriquecer a região. Motéis e bares crescem vertiginosamente para o entretenimento geral. A fé evangélica é uma realidade para católicos, ateus, maçons, umbandistas e iluminati. Cultura se resumo a festa de forró na praça, teatro desativado, gastronomia gostosíssima e a lançamento de livros locais que quase ninguém lê. Alguns portais e rádios noticiam hoje o que vai acontecer amanhã.
Isto é Campo Maior nas primeiras décadas do século 21. Não sabemos o que será do mundo daqui a 100 anos, mas os fatos aqui apresentados sobre este município ficam para julgamento da posteridade. Este é, pois, a cápsula do tempo de uma testemunha ocular da vida local contemporânea.
Aqui escreveu o cronista do passado para os habitantes do futuro.
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